O CAMINHO DA REGULAMENTAÇÃO DO CIGARRO ELETRÔNICO NO BRASIL
10/09/2019 - ÉpocaO CAMINHO DA REGULAMENTAÇÃO DO CIGARRO ELETRÔNICO NO BRASIL
Aparelho é visto como uma epidemia nos Estados Unidos
No ano em que completaria uma década como fumante, a radialista e executiva na área de audiovisual Luisa Campos, de 34 anos, moradora do Rio de Janeiro, descobriu o cigarro eletrônico — por meio da amiga de uma amiga que presenteou esta última com o produto. “Fui olhar aqui no Rio onde eu poderia comprar, não achei nada. Achei na internet”, contou Campos.
Havia vários motivos para a troca do tabaco enrolado em papel — que libera nicotina por meio da combustão e tem milhares de toxinas — pelo vaporizador — que prescinde da combustão para liberar a nicotina, substância responsável tanto pela sensação de prazer e alívio proporcionada pelo cigarro como pela dependência. “O cheiro do cigarro me incomoda muito. Quem fuma tem de fazer algumas adaptações na vida”, disse a radialista.
O outro fator era a saúde. Campos havia fumado por cinco anos, até 2013. Parou e voltou a fumar em 2015. Em janeiro de 2018 aderiu ao cigarro eletrônico como forma de reduzir danos. “Logo que comecei a usar o cigarro eletrônico não usei mais o normal. Foi um meio de parar de fumar quase instantâneo. Não quero dizer que é um milagre. Tenho amigos que não substituíram.”
O cigarro eletrônico, produto que começou a ser comercializado no final da década passada em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, pode funcionar por meio de um vaporizador que libera a nicotina ou do tabaco aquecido, inserido no objeto por meio de cápsulas ou tubos. Números da Public Health England, agência de saúde pública ligada ao governo inglês, mostram que o cigarro eletrônico tem um potencial de danos de 5% em relação ao cigarro comum. Embora não conte com a mesma quantidade de toxinas de um cigarro comum e não precise de combustão, que, no cigarro comum, libera as substâncias tóxicas, sua comercialização é proibida no Brasil desde 2009 — quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu um princípio de precaução, uma forma de “garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados”. Os termos para uma regulamentação do produto serão discutidos em 8 de agosto durante audiência pública em Brasília.
“Considerando que a toxicidade dos cigarros já é tão elevada, é relativamente fácil alguma coisa ser menos tóxica que os cigarros convencionais, mas nem por isso quer dizer que não represente ameaça à saúde humana”, afirmou o médico Alberto José de Araújo, coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira. “A enorme variedade de sabores, as diferentes composições e emissões tóxicas dos cigarros eletrônicos e aquecidos indicam que uma eventual liberação de sua comercialização deveria ser realizada caso a caso, e não de forma ampla, sem considerar as diversas formulações, tipos e voltagens aplicadas.” Para Araújo, “os benefícios dessa proibição (da Anvisa) foram maiores e mais significativos que os supostos e não comprovados benefícios da liberação desses produtos”.
Ainda assim, o cigarro eletrônico vem sendo utilizado como forma de redução de danos no combate ao tabagismo, ao lado de outras estratégias, como os adesivos que liberam nicotina. Um estudo publicado em 2019 na revista científica The New England Journal of Medicine , realizado por pesquisadores do Reino Unido e dos EUA, mostrou que entre aqueles que utilizaram o cigarro eletrônico como um meio de abandonar o cigarro 18% tiveram sucesso, enquanto entre os que usaram outros métodos para substituir a nicotina, como os adesivos e chicletes, o sucesso foi de 10%. No entanto, 80% dos que utilizaram cigarro eletrônico continuaram a consumi-lo, enquanto apenas 9% daqueles que usaram outros produtos permaneceram com eles. “É uma questão que a literatura médica ainda discute”, disse André Nathan, especialista em tabagismo e médico no Hospital Sírio-Libanês. Segundo o pesquisador, embora o cigarro eletrônico seja “uma via mais limpa” que o cigarro comum, deve-se atentar para seu uso como forma de reduzir danos do tabagismo. “Ainda não temos dados que provem que ele seja efetivo.”
Nos EUA o cigarro eletrônico é hoje considerado uma epidemia entre os jovens. De acordo com um levantamento feito a partir de seis estudos com mais de 91 mil participantes, adolescentes e jovens adultos que usam cigarros eletrônicos têm duas vezes mais chances de fumar cigarros comuns em comparação com aqueles que nunca usaram o produto. Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão ligado ao governo americano, mostram que, entre adolescentes em idade escolar, o consumo de cigarros eletrônicos aumentou 900% entre 2011 e 2015. Entre adolescentes no ensino médio, o uso cresceu 78%, de 11,7% para 20,8%, em dois anos. Em 2018, mais de 3,6 milhões de jovens americanos usavam o cigarro eletrônico.
Na Alemanha, pesquisadores também constataram maior incidência no consumo de cigarro convencional entre jovens que experimentaram o cigarro eletrônico. Segundo pesquisa feita com estudantes na faixa dos 12 aos 17 anos, os que experimentaram o cigarro eletrônico tiveram 2,2 vezes mais chances de se tornarem fumantes.
A professora Gisele Birman Tonietto, do Departamento de Química do Centro Técnico Científico da PUC-Rio, vê esse risco para o Brasil, caso a regulamentação do cigarro eletrônico, por exemplo, não atinja a propaganda ao produto, como no caso dos cigarros tradicionais. “O que a gente está vendo no mundo é uma epidemia. O jovem que não fumava está suscetível ao apelo. Nós ( brasileiros ), que somos referência em antitabagismo, não queremos jogar fora o trabalho ( voltado à redução do tabagismo ).”
Para a gerente sênior de Relações Científicas da Souza Cruz, Analucia Saraiva, “o maior risco que o Brasil está assumindo é não regular a categoria”. Ela citou o caso americano como exemplo das consequências da falta de regulamentação. “Quando ( a substância ) não é regulada, quando não existe, por exemplo, uma idade mínima para adquirir esses produtos, aí sim esse risco ( de epidemia ) existe”, afirmou. “O vapor do cigarro eletrônico não é um vapor de água. Ele contém nicotina. Se não tiver nicotina, o consumidor não vai migrar para esse produto. O benefício é, justamente, que o fumante deixe de consumir o cigarro tradicional, que traz essa série de substâncias geradas durante a combustão, e migre para um produto de menor risco.”
Na opinião de Fernando Vieira, diretor de assuntos externos da Philip Morris Brasil, é preciso “ter uma regulamentação que não exponha os não fumantes e os menores a esse tipo de produto. A Anvisa, ao regulamentar, pode ser bem proativa nesse sentido”. A Philip Morris anunciou no ano passado que deixará, futuramente, de produzir os cigarros comuns e terá como um de seus focos os cigarros eletrônicos.
Luisa Campos, que fumava de sete a oito cigarros por dia e, sempre que viajava, levava uma mala três vezes maior que a que leva hoje, devido ao cheiro da fumaça do cigarro, pretende, ainda, deixar de fumar. “O ideal é não ter nada que nos amarre. Não podemos negligenciar a questão do cigarro.”
“‘AINDA NÃO TEMOS DADOS QUE PROVEM QUE O CIGARRO ELETRÔNICO SEJA EFETIVO NA REDUÇÃO DOS DANOS DO TABAGISMO’, AFIRMOU ANDRÉ NATHAN, PESQUISADOR E MÉDICO DO HOSPITAL SÍRIO-LIBANÊS”
A discussão em torno do uso do cigarro eletrônico como forma de reduzir danos do tabagismo ocorre em um momento em que a redução de danos deixa de ser a diretriz do Ministério da Saúde para o combate ao uso abusivo de drogas e à dependência química, voltando-se, novamente, à busca pela abstinência — por meio da internação.
Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com redução de danos desde 1991, a atual política do governo federal é “um retrocesso” que coloca o Brasil em uma situação comparável à de países islâmicos. “Na melhor das hipóteses, 30% ( dos dependentes ) conseguem realmente largar a droga. A redução de danos entra justamente para esses 70% que não conseguiram a abstinência”, disse. “Quando você coloca um indivíduo num programa de redução de danos a médio prazo, ele consegue a abstinência. A redução de danos não se contrapõe à abstinência. É um jeito de dar mais tempo para a pessoa consegui-la.”
O psicólogo Maurício Cotrim, especialista em dependência química, vê na redução de danos um meio para chegar à abstinência, e não um fim para o combate do uso abusivo de drogas e outras substâncias. “Trabalho buscando a abstinência. Senão ficamos enxugando gelo. Os casos de sucesso que conheço são das pessoas que tentaram a abstinência. Senão vira prorrogação de danos.”
Dependente químico “em eterna recuperação”, Cotrim, filho de pai alcoólatra, experimentou álcool ainda na infância. Foi a porta de entrada para substâncias ilícitas, que usou a partir dos 10 anos. Passou por diversas tentativas de tratamento — inclusive religiosas. “Aos 17, pedi ajuda, fui internado.” Deixou a clínica seis meses depois. Teve recaídas. “Fiquei limpo de vez aos 18 anos.” Mantém-se assim há 24 anos.
Reportagem: Danilo Thomaz
Fonte: Época